segunda-feira, fevereiro 24, 2014

Rituais da morte e o luto no traje


De todos os mistérios de vida dois são certos, o nascimento e a morte. Se o primeiro é encarado com alegria e regozijo, o segundo é trágico e triste, muito embora a doutrina cristã defenda ressurreição da alma.

Por ser um assunto difícil de abordar na nossa sociedade, os trajes de luto e os rituais da morte raramente são representados pelos grupos etnográficos e folclóricos.

Não querendo ser extenso nesta matéria, procurei alguns apontamentos etnográficos que caracterizassem estes momentos da vivência de qualquer pessoa.

Os rituais fúnebres, além de possibilitarem contactos afetivos e de conforto entre parentes, apresentam simbologias que pretendem concretizar o ocorrido.



Retrato de mulheres, sec.XX, Museu de Arte Popular,
Instituto dos Museus e da Conservação, I.P. / Ministério da Cultura
Em Portugal os rituais da morte são profundamente influenciados pela tradição católica, resultando num protocolo rígido na representação da infelicidade da família enlutada perante a sociedade.

O preto era a cor do luto e quer homens, mulheres ou crianças, despojavam-se das demonstrações exteriores alegria, havendo uma enorme preocupação em cumprir o luto devido por morte de um familiar. No caso de pais ou filhos eram de 18 meses a 2 anos, de um irmão 1 ano, avós 8 meses e tios 3 meses.

Se havia um casamento marcado adiava-se, a matança não era feita, não havia festas até passar o tempo de luto fechado, depois começava-se a aliviar o luto até aos 2 anos.

O anúncio da morte de alguém era feito pelo toque do sino da igreja (o chamado “dobrar” que ainda hoje assim se faz em algumas regiões) e depressa passava de boca-em-boca o nome do falecido.

Os defuntos não iam para a igreja, eram velados em casa. A casa era desprovida de quaisquer elementos decorativos e até o relógio era levado para casa de uma vizinha para não se ouvir o barulho do pêndulo. A casa era despojada de móveis e a vizinhança emprestava as cadeiras. Em algumas aldeias a água que havia nos cântaros era deitada fora e também se tiravam os enchidos que estavam na chaminé.

O corpo era arranjado, vestido com a melhor roupa, muitas vezes já previamente predestinada (o fato da mortalha), e ficava em cima da cama, até que no dia seguinte era enrolado numa colcha, metido no caixão e saíam com ele a pé para o cemitério. Junto à cama era colocado um copo ou uma taça, com um raminho, com o qual se aspergia o morto.
"Carpideiras no funeral de Juan Lara" - 1951 - Cáceres - W.Eugene Smith

Com grandes prantos, fazendo elogios ao falecido e maldizendo a sorte carpidava-se o morto demonstrando a dor da família enlutada, tarefa relegada para os elementos femininos da família, ou “contratavam-se” carpideiras para demonstrar que o falecido era muito querido.

Se era uma criança (os anjinhos ou injinhos), o corpo era colocado numa urna branca e levado ao cemitério por crianças mais velhas. Se era uma rapariga donzela, vestiam-na de noiva com uma grinalda.

Depois do funeral era a vizinhança que cozinhava para a família enlutada e que ajudavam na limpeza e arrumação da casa. No Alentejo a casa não era caiada, nem nessa altura, nem durante o tempo do luto.

Durante todo o tempo de luto fechado os amigos e a vizinhança mais próxima repartiam o que havia com a família enlutada, respeitando a infelicidade e ajudando uns aos outros.

No que respeita à missa de 7º dia, está relacionada com a tradição católica e às referências na Bíblia ao luto de 7 dias:

·         O luto de Jacó durou 7 dias (Gn 50,10)
·         Saul foi enterrado e fizeram um jejum de 7 dias (1Sm 31,13)
·         O povo chorou a morte de Judite durante 7 dias (Jt 16,24)
·         O luto por um morto dura 7 dias (Eclo 22,11)

O Luto no Trajo


Viúva - Rancho Folc. Casa do Povo da Glória do Ribatejo
Em Portugal os rituais da morte entre os finais do sec.XIX e início do sec.XX têm origens muito antigas e diversas influências culturais, resultando num protocolo rígido na representação da dor da família enlutada perante a sociedade

Na tradição popular portuguesa o luto era profundamente vivido e socialmente controlado. Essa vivência fazia com que fossem colocados de lado os trajos mais vistosos, muitas vezes para o resto da vida, como aconteceu com o traje de branqueta da Póvoa do Varzim após o naufrágio de 1892, que enlutou a maioria das famílias dessa região, apenas sendo ressuscitado em 1936 por Santos Graça.

Pormenores do luto no trajo feminino:

Por morte de um parente, as mulheres vestiam-se de preto e quase tapavam o rosto, sendo socialmente apontadas ou marginalisadas aquelas que não o fizessem. Era sinal de respeito quase religioso.


Retrato de camponesa, sec.XX, Museu de Arte Popular,
Instituto dos Museus e da Conservação, I.P. / Ministério da Cultura
A mulher cobre a cabeça com o mais singelo dos lenços negros e as capas, saias de costas, xailes e biucos criam um “casulo” interiorizando a dor e isolando-a do mundo que a rodeia de forma a se tornar invisivel à sociedade.

No Alentejo e Algarve a mulher não tirava o lenço da cabeça nem o xaile das costas. Mesmo no trabalho do campo, de Verão ou Inverno, as mulheres usavam grandes xailes em bico, meias, lenço e chapéu.

No Minho surge o Traje Escuro ou Dó em sinal de luto ou quando um parente partia para o estrangeiro. Usado para simbolizar dor pela separação, motivada por ausência temporária ou mesmo definitiva de um parente. Na verdade, a diferença marcante dos demais trajes, deve-se a tonalidade que no caso presente e como não poderia deixar de ser predomina a cor preta.

Na Póvoa do Varzim a mulher usava casaco e saia pretos, lenço preto na cabeça, embiocado, e uma saia de costas, também preta, muito semelhante à saia de vestir, com pregas miúdas junto à cintura, embora mais curta e com menos roda. Colocada sobre a cabeça, envolve o corpo até à cintura. O trajo de luto anulava praticamente a figura da mulher. Como sinal de tristeza profunda, de renúncia ao conforto e desprendimento dos bens materiais, esconde o rosto dos olhares intrusos e anda descalça.


"Mulher da Nazaré", Artur Pastor
Também na Nazaré a capa, colocada sobre a cabeça, esconde a cara da mulher e o seu sofrimento, nesta altura chapéu perde o tradicional pom-pom de lã.

No que se refere às joias, durante o luto fechado apenas utilizavam os brincos, aos quais eram cozidos uns paninhos pretos para disfarçar o brilho do ouro, ou então, para quem tinha essa possibilidade, usava brincos com pedras escuras: azeviche, granada, hematita, e ônix.

Em Portugal, no concelho da Batalha, nas minas de Alcanadas (Barrojeiras e de Chão Preto), até ao início do século XX, era extraído o azeviche utilizado na realização de jóias usadas durante os períodos de luto da família pela Família Real Portuguesa. Também era extraido azeviche em Peniche.



Brincos de 1880 em azeviche. Acervo do Metropolitan Museum

Pormenores do luto no trajo masculino:

Aos homens eram impostas menos regras sociais que ás mulheres, para além do resguardo do tempo de luto obrigatório.
Genericamente o homem também adoptava o fato preto, ou da cor mais escura que tinha. Mesmo no trabalho passa a vestir-se integralmente de preto.
No Alentejo e Algarve os homens andavam com a barba grande pelo menos durante 1 mês e não iam à taberna. Em algumas localidades usavam um lenço amarado à cabeça por debaixo do boné ou do chapéu.
O uso do Gabão também era comum, sobretudo na Póvoa do Varzim e Nazaré. Este era feito de tecido de lã castanha (saragoça) com cabeção, capuz e mangas compridas. Nas frentes, carcela e bolsos metidos a costura era pespontada a branco. Forro de branqueta. O capuz cobria não só a cabeça, mas ocultava o próprio rosto, resguardando-o de olhares estranhos

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