quinta-feira, janeiro 23, 2014

A Seda é um Mistério


Tradicionalmente a seda era usada nos bordados característicos das colchas da região de Castelo-Branco; nos panos de esquife, que ocultavam o morto que ia a enterrar embrulhado num lençol, constituindo o elemento nobilíssimo do préstito e cujo uso só aqui registamos; nos entremeios de panos e lençóis de linho; e em tecidos, juntamente com linho, para toalhas de variado uso, guardanapos, panos ornamentais, etc.

Em Portugal, a indústria da seda nunca alcançou grande projeção económica. Fradesso da Silveira, em 1869, analisando o panorama da sericicultura, notava que parte da produção do sirgo era vendida para países europeus, fabricantes de seda, designadamente França e Itália, cabendo-nos apenas 14% do trabalho mais laborioso da produção, e àqueles industriais 86% pelo trabalho mais leve da transformação. Os processos de fiação manual comummente usados nas nossas aldeias foram amplamente verberados como “agentes da destruição da seda”. A severidade desta visão não atinge certas situações caracterizadas por modelos de economia familiar específicos, regidos por uma lógica própria, como a que se pode verificar no caso de Maria Teresa Frade. Aqui, a noção quantitativa esbate-se num pano de fundo em que a qualidade e mesmo um sentido estetizante são dominantes.

Em Trás-os-Montes, onde a prática de laboração doméstica teve certa importância, nomeadamente na região de Bragança, Miranda do Douro, Mogadouro e Moncorvo, aproveitavam a seda residual dos casulos que a borboleta furou – os “capelos” –, a anafaia – as “condas” –, e os “maranhos”, que são a parte final dos fios que envolvem o bicho. Esses desperdícios eram fiados à mão, com roca e fuso, obtendo desse modo um fio mais grosseiro, que tingido de várias cores, constituía o elemento decorativo das cobertas de cama, segundo a técnica do repuxado de trama sobre urdidura de linho – o “borboto” ou “felpa” –, as quais atingiram um elevado nível qualitativo, designadamente em Urros, Moncorvo. Na Beira Baixa, contrariamente, não se conhece o aproveitamento desse tipo de seda.

Em Castelo-Branco, a produção tradicional da seda destinava-se, para além de outros materiais têxteis, constituía uma componente indispensável da confeção das colchas decoradas que, ao longo dos séculos, adquiriram uma dimensão emblemática desta região. Tal processo inicia-se com a criação do bicho-da-seda, associada ao cultivo da amoreira que serve de alimento às larvas que produzem a matéria-prima. Na sua dimensão tradicional, a cadeia operatória de produção do fio da seda consiste na extração do fio dos casulos, após a cozedura deste, na dobagem e enovelamento do fio.
A produção da seda inicia-se com os cuidados prestados aos bichos-da-seda para assegurar a sua alimentação e reprodução. O ciclo reprodutivo destes inicia-se logo após a conclusão da sua metamorfose, que ocorre dentro dos casulos, de larvas em borboletas, entregando-se machos e fêmeas de imediato ao ato reprodutivo. Este corresponde a um período curto, cerca de três dias, caracterizado pela excitação da sedução, fecundação, ovulação, perda de vitalidade e morte. As fêmeas produzem cerca de 300 ovos cada. A semente que daí resulta é colocada numa caixa de papelão, forrada de papel branco no fundo, e guardada numa divisão da casa que regista de Inverno as temperaturas mais altas. De meados de Março em diante os ovos são objeto de uma observação atenta, diária. Quando se dá a eclosão, as minúsculas larvas são colocadas em tabuleiros, juntamente com folhas de amoreira muito tenras, para seu alimento. Seguidamente, esses bichos são dispostos em outros tabuleiros, numa distribuição que atende ao grau do seu desenvolvimento. Em geral são usados os tabuleiros de tender o pão, com o fundo forrado de jornais.

O bicho-da-seda alimenta-se exclusivamente de folhas de amoreira, que são colhidas diariamente por Maria Teresa Frade. O bicho-da-seda tem um ciclo de vida de cerca de 30 / 40 dias assinalado por quatro mudas de pele. A qualidade e abundância alimentar pode encurtar esse período. Quando pequenos, são-lhes dadas folhas duas vezes por dia, aumentando esse número à medida do seu crescimento. A limpeza das camas é feita duas a três vezes por semana.

A intimidade de Maria Teresa Frade com as lagartas permite-lhe saber, sobretudo através da cor, quanto está iminente a feitura dos casulos. Na previsão desse passo, recolhe num pinhal pequenos ramos, selecionando aqueles que têm uma caruma mais miúda e rala. Os ramos de pinheiro são então colocados num dos lados dos tabuleiros, encostados à parede, e rapidamente os bichos se apropriam deles, começando a fazer os casulos, que ficam completos ao fim de três dias, atingindo o estado de crisálida passados cinco dias e o de adulto cerca de dez a quinze dias depois. O período final desta fase exige redobrada atenção de modo a evitar a eclosão, que destruiria a seda. Os casulos são retirados dos ramos, selecionam-se os machos (casulos mais bicudos), e as fêmeas (mais redondos), para reprodução, a semente, e os restantes são expostos ao sol, sobre um lençol, para matar a borboleta com o calor.

 
Na sequência da cadeia operatória, Maria Teresa Frade procede à recolha e arranjo de ramos de carqueja. Os casulos são limpos à mão retirando-lhes a anafaia.

Ferve-se água num caldeiro e lança-se nele uma quantidade de casulos equivalente à capacidade de uma bacia dos velhos lavatórios, mantendo-os a ferver durante dois ou três minutos. O caldeiro é retirado da fogueira e levado para dentro do palheiro onde teve lugar a criação do bicho-da-seda e decorre a operação da fiação. Esta exige a participação de duas pessoas.





 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para o efeito deverá servir-se de um argadilho, colocado ao lado do caldeiro, num plano superior, e no qual se vão enrolando os fios da seda, captados pela outra auxiliar, com a ajuda de um ramo de carqueja, em maior ou menor número, conforme a grossura desejada do fio final. É uma tarefa que exige grande subtileza, operando apenas no núcleo de casulos que sustentam o fio, refazendo-o à medida da gradual progressão do trabalho. O comprimento do fio de cada casulo chega a atingir mil metros. Para a tecelagem o fio é mais grosso; para o bordado é mais fino.



Antes de se retirar a meada do argadilho esta é devidamente atada e depois posta a secar ao ar livre. Para que a seda perca uma certa rigidez, a meada é metida numa panela com água a ferver, juntamente com uma quantidade de sabão equivalente ao seu peso, perdendo a tonalidade amarela, que volta a retomar após várias córas.


Em outros tempos, Maria Teresa Frade vendia muita seda para bordados. Hoje, toda a produção é aplicada na tecelagem, especialmente em toalhas de linho. Para o efeito, a meada é dobada em novelos e, quando se procede à urdidura da teia de linho, intercalam-se séries de fios de seda, que sobressaem em barras longitudinais, que outras similares da trama cruzam, conforme o padrão decorativo imaginado. A teia, após a urdidura, é montada no tear. Neste género de tecido – “montagem com crivo” – usam-se três liços que se manejam de acordo com o remetido nos liços e as configurações da textura que se pretende obter.
 

O processo de transmissão de competências e técnicas tradicionais associadas à produção e transformação da seda era realizado intergeracionalmente, através da aprendizagem informal e exclusivamente com recurso à oralidade.

Maria Teresa Frade é natural da aldeia da Silvosa no Concelho de Oleiros. A atividade profissional do seu marido, obrigo Maria Teresa Frade a viver na cidade de Castelo Branco, onde construiu no quintal da nova casa citadina um pequeno e elementar edifício, onde instalou os equipamentos necessários para se poder dedicar à prática da tecelagem manual, que fora ao longo da sua vida de solteira, uma das grandes paixões.

Logo que as condições económicas o consentiram, o casal adquiriu uma parcela de terreno na periferia da cidade, modelando-o rapidamente a seu gosto, mercê dum saber empírico profundo, desenvolvendo um micro espaço agrário extremamente diversificado. Quando passou a residir em Castelo Branco plantou três dessas árvores, de modo a assegurar a produção da seda necessária à atividade da tecelagem. Em outros tempos vendia seda para bordados, mas mais recentemente a produção foi aplicada na tecelagem, especialmente em toalhas de linho.


O presente artigo foi elaborado a partir do texto A seda é um mistério, da autoria de Benjamim Pereira, editado na brochura que acompanha a edição em VHS do filme homónimo realizado por Catarina Alves Costa em 2003.
Para além do registo de conhecimentos e de saber-fazer multisecular, de que Maria Teresa Frade era na região uma das últimas detentoras no momento desta investigação, é também a sua voz que aí ecoa e foram as suas próprias palavras (“A seda é um mistério…”) que resultaram no título dos documentos finais.

A Seda é um Mistério (2003)
Realizadora: Catarina Alves Costa
Copyright: © Laranja Azul / IMC, IP.

Imagens: Catarina Alves Costa
Fonte: MatrizPCI

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