segunda-feira, dezembro 22, 2014

O Ouro Popular Português II

Brincos

Antes de mais, convém referir que a palavra arrecada constituía um denominador geral para aquilo a que hoje chamamos brincos, só no final do sec.XIX passaram a designar um tipo específico de brincos.

Em todos os tempos e lugares os brincos são, entre os adornos, os de preferência indeclinável, estando muitas vezes arreigado à superstição, como proteção dos espíritos malignos.

Quando uma menina nascia (com cerca de 1 mês) furava-se as orelhas com uma agulha nova com linha, molhada em azeite para escorregar melhor, e durante algum tempo (normalmente 7 dias) a linha ficava na orelha até a ferida cicatrizar. Se infetava, a mãe tratava a ferida com o seu próprio leite até curar.

Os primeiros brincos (“ais”, “botões” ou “argolinhas”) eram oferta da madrinha de baptismo juntamente com o vestido. Em caso de fatalidade, as mesmas peças podiam ser vendidas para comprar a mortalha; o padrinho pagava o caixão. À medida que a criança crescia, estes brincos eram substituídos por outros maiores de acordo com os gostos e aspirações da jovem.

Os novos brincos eram oferecidos pelos pais ou comprados pela própria, com o fruto das pequenas economias domésticas que iam arrecadando com os anos.

Raras eram as mulheres que não usavam brincos e estes acompanhavam-nas diariamente, a sua presença era imprescindível em todos os momentos. Eles simbolizam não só adornos e ostentação mas também sinal de estabilidade da economia doméstica.

Quando em luto, retiravam as argolas. O mais frequente era, no caso de não poderem comprar uns brincos mais adequados de azeviche ou ónix, cozerem uns paninhos pretos para disfarçar o brilho do ouro.

Por fim, quando morriam, os brincos que traziam nas orelhas acompanhavam-nas na tumba. Em algumas regiões eram oferecidos pela família à mulher que fosse ajudar a vestir o corpo.

A propósito do ouro costuma-se dizer “para a missa o que puderdes, para a feira quanto tiverdes

Se no Minho as mulheres se vergam com o peso do ouro, o uso dos brincos era generalizado a todo o país.

Em Mogadouro (Trás-os-Montes), as mulheres usavam brincos ou arrecadas e na região de Viseu, como em toda a Beira Alta, aos domingos e dias de festa ou romaria, as preocupações com o traje eram reforçadas com as arrecadas. As de Coimbra seguem-lhe o exemplo e as varinas a todas ultrapassam em dias de passeio e cerimónia.

Na região da Bairrada as arrecadas assumiam um grande valor tanto ao nível económico como afetivo-emocional, daí serem muitas vezes condicionadoras na colocação do lenço de forma a não as ocultar.

A nazarena também gosta de ouro. O grande brio e aspiração das mulheres do mar é possuírem brincos, em forma de medalha, com o retrato do marido, dentro de um aro de ouro. Aparentemente estes brincos seriam desconhecidos noutras regiões, no entanto, as medalhas com retratos dos maridos ou familiares tiveram em voga na região setentrional do país, mas usadas ao peito, penduradas nos cordões ou em fios.

À medida que caminhamos para Sul os estudos sobre o uso de ouro são raros. No entanto teriam o mesmo valor económico e afetivo que era atribuído noutras regiões, embora a quantidade e riqueza fosse menos exuberante.

É alentejana a seguinte quadra:

Gargantilha, brincos de ouro,
Tudo hei-de mandar vender;
Caiu o meu bem nas sortes,
Soldado não há-de ser.

 
Tipos de Brincos

Argolas – As argolas (outrora também designadas como pensamentos, bichas ou arriéis) constituem um dos diversos tipos de arrecadas. Definem-se como sendo enfeites, geralmente em forma de arco, com um gancho, que as mulheres penduram em orifícios abertos nas orelhas, podendo ser simples, de chapa batida lisa ou ornamentada, de sanguessuga ou roliça. Conforme a sua forma também eram conhecidas como africanas, farinheiras (no Alentejo), argolas indianas, de regueifa, de carretilha, de leque, ou carniceiras, tomando por vezes o nome de uma cidade “Coimbra” ou “Barcelos”.
 

 Argolas Carniceiras – também conhecidas como de “Barcelos”, chamavam-se assim pelo facto de adquiridas pelas mulheres dos talhantes de Barcelos, pessoas abastadas, que gostavam de ostentar estas argolas grossas. Na Póvoa de Lanhoso são também conhecidas como Argolas à Marchanta. Existindo várias variações que vão do liso às com motivos decorativos.

Argola em crescente – O crescente acentua a grossura central e diminui sensivelmente para as extremidades. Existindo variações conforme a secção, que pode ser plana, quadrangular, roliça ou arestada.

Argolas “Minhotas” – Em termos estruturais, as arrecadas apresentam formas ligeiramente diversas, variando entre o corpo discoudal, oval ou losangular. Superiormente a peça é dividida por duas hastes mais ou menos afastadas e profundas, formando um U, de onde parte a argola de suspensão auricular. Como elemento decorativo central surgem essencialmente bolotas ou cachos de uvas.



Arrecadas de viana – Castrejas (as complexas arrecadas como as de Laúndos, Afife e Estela) – Com a sua “janela”, ou “pelicano” ou “bambolina” na sua forma lunular com as respetivas campainhas, sempre em número ímpar, e que têm a virtude de afastar espíritos maléficos.


Brincos de chapola, parolos ou de luas - Chamavam-se de “chapola” por serem feitos em fina chapa de ouro, “parolos” por serem, outrora, usados pela mulher do campo, designada de “parola” pela citadina. Atualmente, estes brincos caíram em desuso nas aldeias e procurados pelos habitantes das cidades. As aldeãs, ao verem-nos, exclamam: “Sume-te diabo! Que brincos parolos!” Chamam-se de “luas” por terem, quase todos, quartos de lua em relevo


Botões


Exemplo de botões (Alentejo)

Exemplo de Botões (Alentejo)

 
 
 
 




Botões - Ofertava a madrinha de baptismo, à qual competia dar a mortalha se a menina viesse a “tornar-se anjinho do Senhor”! Por isso - mau grado – se a criancinha morresse vendiam-se os botões para ajudar o custeio do vestido que “levaria para o céu”! Se tal fatalidade não ocorresse, então, à medida que o crescimento dela se ia verificando, os “botões” ou “botõezinhos”, iam sendo trocados. Em algumas regiões tornaram-se o modelo preferido, por serem mais pequenos e menos onerosos.

  
Brincos à Rainha ou à Vianesa
Brincos à Rainha ou à Vianesa - À moda da rainha, de mulher fidalga ou burguesa rica. São brincos muito elegantes e, ao contrário das arrecadas, são cópias adaptadas dos brincos e laças que apareceram em Portugal no reinado de D. Maria I.
Estes brincos eram a ambição de qualquer jovem quando se ia ourar.


Brincos à Rainha
(Estes exemplares faziam parte do conjunto de
joias privadas da Rainha Dna Amélia)


  
 
 
 
 
 


Brincos à Rei
Brincos à Rei - São muito parecidos com os brincos à Vianesa, mas mais elegantes, compostos por uma parte superior, uma parte média em forma de laço (herdeira da laça ou laçada) e uma parte terminal. - não aparece aquela parte móvel que se encontra ao centro duma das partes dos brincos à rainha. A designação não significa que eram usados pelos reis, ou fidalgos, mas para se distinguir dos brincos à rainha.


Brincos de Princesa
Brincos à Princesa – traduzem-se numa outra variante dos brincos à rainha.












Brincos com Pedras - Normalmente apresentam pedras azuis ou vermelhas, são curtos ou compridos, com uma pequena franja, onde balançam uns “penduricalhos”. Fazem conjunto com colares, tão em voga nos anos 40, mas que ainda se continuam a usar.

Brincos com pedra
Brincos com pedras
Brincos de meia libra - Os brincos de meia libra refletem a utilização de moedas como adorno, não só como pendentes de cordões mas também das orelhas, sendo normalmente utilizadas libras ou meias libras.
 
Outros tipos de brincos:
 
Argolas de Sanguessuga

 
 
 
Argolas Estampadas



Brincos Barrocos (Póvoa do Varzim)

Argolas Estampadas

 
Argolas de Filigrana

 
 
 
Brincos com Pedras

No próximo artigo desta série falaremos de CORDÕES E COLARES
Artigo Relacionado: O Ouro PopularPortuguês I

sexta-feira, dezembro 19, 2014

O Ouro Popular Português I

O território hoje ocupado por Portugal foi em tempos remotos bastante ricos em ouro, cobre e estanho, e chegou a constituir uma das maiores reservas auríferas da Europa, como referem Plínio e Estrabão.

Com o declínio do ouro no mediterrâneo, Fenícios e Tartessos (sec.VII a.c.) rumam é península ibérica, introduzindo técnicas de manufatura e influências artísticas, nomeadamente a filigrana. No entanto, a filigrana só surgirá na ourivesaria popular a partir do sec.XIX.  

Ricardo Severo, José Fortes e Rocha Peixoto estabelecem uma comparação entre os brincos e arrecadas saídos das oficinas do norte com as suas parentes da proto-história, com semelhanças não só na forma como na técnica e decoração, estabelecendo assim uma tradição historiográfica na ourivesaria popular portuguesa que chegaria aos nossos dias.

Com a produção semi-industrial, não mecanizada, mais acessível a uma nova camada da população, lavradores abastados e pequenos comerciantes e industriais, a produção de ourivesaria atingiu maior variedade e importância a partir da 2ª metade do sec.XIX.

O Ouro como Acessório Popular

Muito embora existam algumas diferenças pontuais, podemos dizer que a relação do povo com o ouro é idêntica em todo o país, havendo uma predominância da sua utilização na ourivesaria feminina.

No entanto, ouro não era só adquirido por gosto, mas também como aforro seguro para momentos de aflição, principalmente junto de ourives feirantes (vendiam exclusivamente em feiras) ou ambulantes (deslocavam-se de bicicleta de terra em terra apregoando o seu produto, oriundos sobretudo de Guimarães e Cantanhede).

Quanto ao uso de ouro pelas mulheres do povo podemos verificar a existência diferenças entre as várias regiões, quer de gosto como de quantidade.

Essas diferenças estão diretamente relacionadas com a capacidade económica da mulher, sendo o uso de ornamentos em ouro é mais ostentoso a norte que a sul e no litoral em relação ao interior.

Em primeiro lugar, verifica-se uma relação direta entre a fertilidade das terras e a produção de excedentes agrícolas geradores de riqueza monetária. Podemos efetuar uma comparação entre o Alto Minho Litoral (Viana) e o Alto Minho Interior (Castro Laboreiro), uma vez que, na região litoral a terra é mais fértil que nas áreas serranas temos excedentes de produção geradores de riqueza passível de investimento em ouro.

O vimaranense António da Costa Miranda (físico e cirurgião), no início do sec.XVII, dissertando sobre a extraordinária riqueza existente na sua comarca em taças de ouro e prata, explica que “A causa porque metem mais fazendas em taças, é porque a terra é muito apertada e não terem onde meter mais gados do que têm, nem haver herdades na terra em que se empreguem seus dinheiros”.

Com base nesta ideia, podemos compreender, por um lado, a existência de relatos no sec. XIX, sobre a profusão de ouro entre os lavradores e pequenos burgueses minhotos, e por outro, perceber que nas zonas serranas do Alto Minho, Trás-os-Montes ou Beira, com pouca terra fértil, o rendimento fosse canalizado para o gado caprino ou ovino pela abundância de pastagem, em detrimento do investimento em ouro.

Em segundo lugar, temos a questão da propriedade da terra. Ser proprietário da terra, quer a trabalhe ou não, é sinónimo de maior possibilidade de lucro, pois para os rendeiros o valor da terra significava um compromisso a satisfazer independentemente dos ganhos.

Em regiões em que predomina o sistema latifundiário, como no Alentejo, Ribatejo e Algarve, poucos eram os ganhos para o povo que trabalhava a terra. Aproveitava-se os rendimentos de uma campanha agrícola sazonal bem-sucedida (apanha da azeitona, cortiça, plantio do arroz, etc.), ou a venda de algum animal criado na economia doméstica, altura em que conseguia amealhar uma quantia mais elevada, para comprar uma peça de ouro.    

Podemos assim concluir que, relativamente às populações agrícolas o uso de ouro como adorno do traje, com maior ou menor ostentação, é o resultado da existência de excedentes passíveis da criação de riqueza e de possibilidades de investimento em algo mais útil para o povo, como terra ou gado.

No que se refere às populações do litoral a relação da mulher com o ouro é idêntica. Ele representa status social e sinónimo de fainas bem-sucedidas, sendo mostrado sobretudo em dias de festa, sendo muitas vezes empenhado no inverno, altura em que o mar não permitia a pesca. Assim, o ourives estava muito próximo do penhorista.
(Este artigo terá continuação nos próximos dias)

quarta-feira, dezembro 17, 2014

Mitificação e paisagem simbólica: o caso do Estado Novo

Por Joaquim Sampaio

Resumo
A paisagem resulta de um processo complexo de forças onde se reconfiguram elementos visíveis mais ou menos imediatos, aos quais se associam construções simbólicas que intervêm na sua estrutura, permitindo compreendê-la com outra profundidade. No caso do Estado Novo, o papel de António Ferro, à frente do SPN/SNI, foi determinante para a construção de representações territoriais a partir de políticas folcloristas baseadas em ideais românticos e nacionalistas construídos desde finais do século XIX, nomeadamente no conceito de Casa Portuguesa, que se refletiu em iniciativas como o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, uma das realizações apoteóticas daquele estadista. A visão ruralista e folclorista do regime salazarista e de António Ferro cristalizou imagens de um Portugal atemporal de paisagens estetizadas e de camponeses transformados em jardineiros da paisagem.

Quatro décadas de governação do Estado Novo produziram marcas profundas na sociedade portuguesa e, consequentemente, na mitificação e construção de paisagens. Dessa governação, interessa-nos abordar, particularmente, o papel folclorista do Secretariado de Propaganda Nacional – SPN – criado em 1933, que viria a tomar a designação de Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo – SNI – em 1945. À frente deste organismo esteve António Ferro, figura emblemática e incontornável da época, que em 1932 sugeriu a Salazar que criasse um organismo responsável pela propaganda do regime, capaz de promover a «Política do Espírito» (Ó, 1999), fomentando políticas culturais de acordo com os interesses ideológicos do governo. É neste sentido que iremos ver que António Ferro surge como doutrinador do regime durante os anos 30 e 40, deixando as suas impressões na geografia deste país.
Salazar manteve Portugal à margem da modernização, numa ruralidade que garantisse a serenidade social, assentando na trilogia Deus-Pátria-Família. O povo camponês continuava nas suas tradições seculares, longe da escolarização e do desenvolvimento económico, compondo as paisagens de sempre de Silva Porto ou de José Malhoa, mergulhado na sua religiosidade, na sua pobreza, sob protecção do ditador que prometia defendê-los da decadência, promover a decência, a moral pública e o puritanismo conservador, tornando Portugal num país de subservientes e de provincianos, como refere Fernando Pessoa em O Caso Mental Português, em 1932, onde nem as elites são suficientemente formadas, acusando uma ausência de atitude crítica. A completar o atavismo português, a população urbana também foi mantida longe das inovações estrangeiras, da forte industrialização e modernização que constituíram “os trinta gloriosos” em países como, por exemplo, a França.(...)

O projecto ideológico do Estado Novo apresentava um regime totalitário que assumiu a propaganda política para afirmar a «nova ordem», recorrendo à «essencialidade portuguesa», atemporal porque a assumiu como se existisse desde sempre, fazendo evidenciar valores e características culturais populares que «não colocassem dúvidas» quanto à sua origem de uma portugalidade geneticamente «comprovada», serenando os espíritos críticos e apaziguando dúvidas, procedendo «quer à revisão purificadora e autolegitimadora da memória histórica, quer à fabricação de um conceito integrador e unificador de “cultura portuguesa”, de raiz nacional-etnográfica», que passaria pela «reeducação» dos portugueses,garantindo «uma nação regenerada e reencontrada consigo própria, com a essência eterna e com o seu destino providencial» (Rosas, 2001).
Desse projecto fazia parte o que Fernando Rosas designa por «mito da ruralidade» (Idem), um Portugal tradicional cuja economia era essencialmente agrícola mas, mais do que isso, era um «estado de espírito», um estilo de vida que pretendia evidenciar as suas virtudes e se apresentava como a «verdadeira» identidade nacional, a força da «raça portuguesa», a nobreza do seu temperamento na sua vocação de país pobre mas honrado, vivendo numa mediocridade sem ambições, já que na dominação do Cardeal Cerejeira, forte aliado de Salazar, o contrário seria grande pecado. Daí que a propaganda do regime fizesse passar a ideia de um povo sereno, respeitador, alegre e feliz na harmonia dirigida por um paternalismo infantilizador.

As virtudes do «português» precisavam de ser valorizadas, recuperadas e revividas, às quais o aparelho do Estado procedeu a grande investimento. Dos vários organismos que tinham a missão de trabalhar essas virtudes, podem ser destacadas a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho – FNAT – criada em 1935, a Legião Portuguesa, fundada no ano seguinte, e a Junta Central das Casas do Povo –JCCP–, cujos objectivos se orientavam para a doutrinação do povo, para a manipulação ideológica através do «bom gosto», da «cultura popular» e do «carácter do povo português», para encenações que resultavam numa cultura do espectáculo.

De todo o aparelho do Estado, o SPN/SNI surgiu como o organismo responsável pela estetização do país, pela criação de mitos, pela «invenção» de paisagens, resultado da ideologia do regime salazarista e do desenvolvimento e concretização de ideias de António Ferro, autor da «Política do Espírito» e da folclorização de Portugal, retomando conceitos que foram desenvolvidos desde finais do século XIX, relacionados com o romantismo e o nacionalismo, entre os quais o de casa portuguesa.

O SPN/SNI deu visibilidade a aldeias, monumentos, etnografias, criou postais ilustrados da vida portuguesa bucólica, pitoresca, sublime, criou imaginários de paisagens, eternizando-as, mitificando-as, purificando-as, tornando-as inocentes, fundando-as enquanto natureza e eternidade, dando-lhes uma clareza que não é a da explicação, mas a da constatação (cf. Barthes, 2007). (...)

A mitificação encontra-se associada à construção de paisagens simbólicas. Elas deixam de ser paisagens «anónimas» para surgirem com conotações, cheias de significados e significações2. (...)

·         1. O mito da Casa Portuguesa
Os processos de objectificação da cultura popular portuguesa constituíram um dos aspectos centrais do discurso nacionalista do Estado Novo, sobrelevando determinadas características, do que supostamente seria verdadeiramente português, genuíno, original, conduzindo ao «reaportuguesar» da cultura nacional, tendo como referência as fundações da nacionalidade. O tema em volta da casa portuguesa é um bom exemplo de como a paisagem é objecto de instrumenta

Há uma vasta investigação sobre a temática dos mitos. (...)
Desde finais do século XIX que se criou um movimento na defesa da existência de uma habitação popular portuguesa (França, 1990; Leal, 2000), do qual se destacou Raul Lino (1879-1974), que viria a ser o seu maior conceptualizador e divulgador, procurando a institucionalização da casa portuguesa.
(...)
Referindo com frequência o «bom gôsto», contrariando a «decadência do sentimento artístico», e o «péssimo gosto [de] usar cousas fingidas quando se não podem ter as verdadeiras» (Idem), para sustentar as ideias da casa portuguesa, A Nossa Casa identifica-se com o «encanto produzido por essas boas casas portuguesas de há meio século atrás», apresentando-se como «casitas sorridentes, sempre alegres na sua variada caiação», com a «lhaneza das suas portas largas e convidativas, a linha doce dos seus telhados de beira saliente com os cantos graciosamente revirados, o aspecto conciliador dos seus alpendres, as trepadeiras garridas respirando suficiência» e as suas «chaminés hospitaleiras e fartas» (Idem), defendendo o que é supostamente português, usando materiais de produção (industrial ou artesanal) portuguesa, em simbiose com a natureza e com as «nossas tradições» para não desarmonizarem «no meio da nossa paisagem».

A insistência do «bom gosto», omnipresente em toda a obra, rejeitava qualquer forma de construção estrangeirada, em alusões directas ou indirectas ao chalet e a outras formas de construção que se afastassem do receituário de casa portuguesa proposto pelo autor. Os «apontamentos», tanto de A nossa Casa como de Casas Portuguesas, foram escritos para educar os gostos dos portugueses, mas não os «simples», os pobres. Quando Raul Lino referia que «construir é educar», pensava em primeiro lugar nos arquitectos e nos que se encontravam associados à construção, mestres-de-obras, mas também à burguesia e às elites portuguesas.
A educação do «bom gosto» encontrava-se sempre associada à ornamentação, ao asseio, ao «temperamento romântico», à alegria, como se Portugal fosse um país onde não existisse miséria, casas populares decadentes, e onde não houvesse enorme variedade construtiva, desde as cabanas e palheiros a casas sem condições mínimas de habitabilidade.

A casa portuguesa, um conceito que perdurou durante décadas, foi posto em causa com a publicação dos dois primeiros volumes do Inquérito à Habitação Rural, em 1943, realizado pelos engenheiros do Instituto Superior de Agronomia, onde se mostrava que as condições de habitação não eram o «ninho» nem a «casa dos simples» de Raul Lino. Havia, antes, más construções por Portugal fora e condições de vida difíceis [as aldeias embora situadas numa] paisagem rica de tons verdes e frescura de água […] constituem conjuntos de aspecto pobre, senão miserável. […] Retalhados de caminhos de piso irregular, encharcados de águas […], atravancados de lenhas e estrumes – passeio de homens e animais e recreio de crianças sujas, piolhosas e assustadiças que precocemente saem do berço, a gatinhar, para acompanhar porcos e galinhas – estes aglomerados populacionais oferecem o espectáculo de quase todas as condições de que os homens se rodeavam em tempos primitivos.

A obra de Raul Lino, nomeadamente A Nossa Casa e, mais tarde, Casas Portuguesas, associada a um discurso harmonioso, tradicional, nacionalista e atemporal, interessou ao Estado Novo, pelo menos numa primeira fase fascizante, em que Salazar teve necessidade de encontrar discursos conciliadores de vários sectores da sociedade com o do seu regime totalitarista, sendo necessário lutar contra a «desnacionalização» e incentivando o «reaportuguesamento» tal como vimos anteriormente, coadunando-se perfeitamente com as políticas desenvolvidas pelo SPN/SNI, nomeadamente com a realização do concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal.

·         2. A Política folclorista do SPN/SNI
O regime salazarista procurou controlar os vários sectores da sociedade portuguesa através de um aparelho de Estado forte e com um discurso que reproduzia o modelo defendido pelo chefe do governo.
 
Tal como vimos, o SPN surgiu por sugestão de António Ferro a Salazar, constituindo-se como o organismo responsável pela transmissão da boa imagem do regime e de Portugal. O seu papel era, assim, propagandista, servindo-se da rádio, do cinema e da imprensa escrita para divulgar as suas ideias, mas as suas acções foram mais longe, promovendo exposições, encenando festas populares e cortejos, apostando num modelo estético ruralista e conservador, promovendo o «bom gosto» e a «Política do Espírito», desenvolvendo «desde a Beleza moral à Beleza plástica», controlando a política cultural do governo através da estrutura que António Ferro dirigia.
 
A criação do SPN estava directamente vocacionada para duas missões. Uma, de índole cultural, deveria promover as condições necessárias ao estudo dos usos e costumes de Portugal, mergulhando nas tradições do povo, preservando-as e divulgando-as. A segunda, claramente propagandística, assumindo um papel doutrinador, foi servir-se da cultura popular para educar o gosto dos portugueses segundo os valores estéticos do regime e para controlar as massas.
 
A doutrinação do SPN/SNI estava presente em muitos dos discursos de António Ferro e nas mensagens associadas à realização de espectáculos, exposições e outras iniciativas. Em 1933, afirmava este estadista: «convenceremos assim o povo, a pouco e pouco, de que pensamos nele, de que a sua felicidade e o seu bem-estar constituem uma das nossas maiores prioridades» (citado por Alves, 2007a).
 
A felicidade e o bem-estar do povo, sabemos hoje em que resultaram. As preocupações de Ferro traduziram-se mais numa política folclorista da cultura popular, encenando quadros da vida rural, ignorando e omitindo as condições de vida difíceis em que os camponeses vivam, cristalizando momentos fotográficos da estética da cultura portuguesa de acordo com a ideologia política do regime, tendo em vista transmitir uma imagem de nação pacífica, harmoniosa e com identidade própria. A doutrinação folclorista e ruralista do SPN/SNI divulgava paisagens campesinas bucólicas, rústicas e «puras», longe da modernização, fosse dos camiões da coca-cola, como vimos, ou de outros símbolos, mantendo os seus traços tradicionais e populares que ao olhar do citadino representavam o país verdadeiramente genuíno, exigindo a sua preservação e garante do que seria a identidade nacional.

Nota- A propósito de como a estrutura do Secretariado de Propaganda Nacional se complexificou com a sua passagem a Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, ver Paulo, 1994.
 
Tal como nas tendências culturais de finais do século XIX, o SPN/SNI associava a cultura popular a ruralidade, da qual, apesar de observada no presente, eram procuradas as suas origens, a sua «autenticidade», e, enquanto testemunho do passado, se tentava preservar antes que desaparecesse, celebrando-se as excelências das tradições populares (Leal, 2000). Contudo, tal como demonstra Vera Alves, apesar do trabalho dos investigadores e colaboradores do SPN/SNI, os estudos da cultura popular de matriz rural vão recuperar o conhecimento desenvolvido desde finais de Oitocentos até ao Estado Novo (Alves, 2007a), passando pelo Museu Etnográfico Português, criado em 1893, ou pelos trabalhos desenvolvidos por Rocha Peixoto, Leite de Vasconcelos, entre outros. É na «ingénua» moldura do barro, nas cantigas sem influências externas, nas tradições intactas e genuínas do povo, na sua pureza e alegria que o SPN/SNI procura encontrar o Portugal autêntico ao percorrer as recônditas aldeias de Portugal, com as suas paisagens rurais de «postais ilustrados» descritos nos Guias de Portugal publicados nos séculos XIX e XX.
 
Mas nem sempre as paisagens recônditas e genuinamente populares convinham àquele organismo. Os critérios para selecção de aldeias para o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal levantam muitas dúvidas, assim como a eleição de símbolos da arte popular para mostrar em Lisboa e noutras cidades do país ou do estrangeiro. No primeiro caso, por exemplo, as aldeias a concurso da província de Trás-os-Montes, Alturas do Barroso e Lamas de Olo, «teriam sido postas de parte devido às difíceis condições de acesso e a um “reconhecido primitivismo, que a nenhuma dava possibilidades de vitória (vitória que implicava sempre a recomendação feita a nacionais e estrangeiros de visitarem de futuro essa aldeia, como a mais portuguesa de Portugal)”» (Alves, 2007a). No segundo caso, a selecção era feita segundo critérios de impacte visual – como é o caso do efeito decorativo do galo de Barcelos, transformado num ícone da portugalidade – e pelo gosto estético de António Ferro e dos seus colaboradores, sendo rejeitados se considerados «desprovidos de qualidades estéticas» (Idem).

Nota: António Ferro deu visibilidade à visão bucólica e idílica dos Guias de Portugal, «um paiz cuja formosura, doçura de clima, e bonhomia dos seus habitantes, é digno de ser conhecido, e quiçá mais do que é, para que os estranhos o avaliem» (F. J. Almeida, 1880, Guia de Portugal. Lisboa: Typographia da Casa de Inglaterra. Citado por Pires, 2001).
A acção influenciadora do SPN/SNI reflectiu-se nos vários domínios da cultura popular portuguesa. Tendo como pressuposto a defesa da «tradição», controlava a arte popular. Na encomenda de peças para as várias iniciativas em várias cidades ou para o Museu de Arte Popular, eram rejeitadas peças que não fossem «genuinamente populares», quer porque apresentavam imagens «renovadas» quer porque a sua confecção recorria a produção não tradicional, nomeadamente a formas de «configuração industrializada» ou a «fantasias modernas», ou eram sugeridas modificações, como aconteceu na encomenda de um Tabuleiro de Tomar feita por Francisco Lage para o Museu de Arte Popular quando referia que «com esta decoração uniforme azul […], o tabuleiro resulta frio não sendo possível a sua valorização na sala a que estava destinado» (citado por Alves, 2007a).
 
O «genuinamente popular» gozou de estatuto especial e encontrou no SPN/SNI um trampolim para a visibilidade nacional e internacional, como é o caso dos tapetes de Arraiolos, que já antes tinham sido «objecto de uma intensa campanha organizada pela revista Terra Portuguesa que conduziu à revitalização de uma tradição que parecia encontrar-se então praticamente moribunda» (Leal, 2000). A reinvenção de tradições não se aplicou somente aos tapetes de Arraiolos mas também a outros casos que se enquadrassem na política folclorista de «bom gosto» do SPN/SNI.
 
Da acção deste organismo resultou a valorização de instrumentos de trabalho agrícola, da exploração do pormenor das peças, da miniaturização e do que deveria ser considerado «arte popular portuguesa». Como só lhe interessavam objectos de apreciável «beleza», capazes de cativarem os olhares dos visitantes das exposições e dos desfiles e de permitirem a construção de imagens associadas a paisagens idílicas e bucólicas, foram criados mitos que ainda hoje perduram, nomeadamente a visão romântica do mundo rural, quando na verdade existiam camponeses pobres, analfabetos e miseráveis que o Estado Novo quis esconder do mundo. A visão do «camponês esteta» e do camponês poeta (Alves, 2007a; 2007b), artista das maravilhas da arte popular portuguesa expostas no país e no estrangeiro, era um simulacro. Uma encenação conduzida por António Ferro e pelos seus colaboradores que determinavam os perfis dos actores e davam orientações precisas para os ensaios dos eventos e para a aquisição de peças de arte popular.
 
A estetização do camponês e do mundo rural levada a cabo pelo Estado Novo correspondia à imagem que António Ferro pretendia dar de Portugal através da sua «Política do Espírito» para que os visitantes das paisagens «genuínas» de Portugal pudessem apreciar uma ruralidade pacífica de agricultores transformados em jardineiros da paisagem. Essa ideia torna-se clara na propaganda veiculada pelas informações do SPN/SNI, nomeadamente pela Revista Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo, na qual aquele organismo publicava as ideias e imagens que o regime pretendia fazer passar para a opinião pública, em especial para a população urbana, sobretudo, para os estratos sociais mais elevados.
 
Essas imagens transportavam, como se sabe, uma forte carga sociopolítica, condicionando a forma como os visitantes viam as paisagens de Portugal, herdeiros de uma tradição oitocentista e de início do século XX. As paisagens descritas pelo regime correspondiam a um discurso que pode ser encontrado nos vários Guias de Portugal, de um país de belezas singulares que mereciam ser visitadas. Na apresentação de imagens turísticas de Portugal, publicadas na Cartilha da Terra Portuguesa, em 1950, António Ferro sublinha os seus «valores históricos paisagísticos e pitorescos» (citado por Pires, 2001):
Há muito que se fazia sentir a necessidade duma brochura prática, manejável, de algibeira, em que os turistas nacionais e estrangeiros se pudessem aperceber, rapidamente, do essencial da terra que visitam, entre dois comboios ou numa paragem curta de automóvel: os seus mais belos panoramas, monumentos principais, festas típicas, hotéis ou pousadas, as próprias especialidades culinárias. […] Consulte-se, portanto a «Cartilha da Terra Portuguesa» como se consulta um ficheiro que nos indica modestamente os dados essenciais do problema que desejamos tratar ou até as próprias fontes onde devemos beber. Seja como for, esta edição singela do Secretariado será, doravante, uma obra indispensável, de iniciação, para todos os devotos da nossa Pátria, o catecismo da sua Beleza.
 
O desfasamento entre o discurso oficial e a realidade era enorme. A «poesia dos simples» e do «camponês esteta» era desmoronada pelo campónio com os seus trajes andrajosos e caras de esfomeados. Ao contrário dos rasgados elogios às paisagens portuguesas e à arte popular portuguesa, como por exemplo à saia do trajo de Afife, que «é na verdade, uma saia de belíssimo efeito, onde se afirma um raro bom gosto aldeão!», ou sobre a indumentária de Santa Marta de Portuzelo, que é um «deslumbramento de coloração, uma verdadeira romaria de cores», e ao país folclorista de sardinheiras floridas nas janelas e nas soleiras das portas, num quadro romântico pintado por Raul Lino, aparecia o Portugal fora das actuações dos pauliteiros de Miranda no Albert Hall, longe das exposições e das comitivas que o percorriam, tal como Unamuno escrevia (citado por Alves, 2007a):
 
Vimos e oímos […] en Lisboa, en Braga, en Viana do Castelo, en Aveiro, coros populares de canto y baile, con típicos trajes comarcales, ricos de colorido y traza; coros con el cometido de mostrarnos la decretada alegría en el trabajo, el contento con el reparto de la pobreza; pero nada me habló más ni mejor que el no preparado concurso de pescadores humildes de la playa de Nazaret. Donde alguno se nos acercó a pedirnos una “esmolinha – una limosnita –, y como se la diéramos en calderilla española, nos dijo en castellano: “Muchas Gracias”.
 
O SPN/SNI não inventou o galo de Barcelos nem o tapete de Arraiolos mas soube aproveitá-los bem para as suas encenações e produções espectaculares de um Portugal de paisagens deslumbrantes.

·         3. A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal
O Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, realizado em 1938, pretendia levar mais longe o poder de encenação do regime salazarista. As exposições nacionais e internacionais já não eram suficientes, era necessário viver a encenação na própria realidade, na própria paisagem, mostrando a identidade de Portugal, servindo de teatro às tradições populares. O evento foi notícia repetidamente, dando consagração absoluta a António Ferro e ao SPN/SNI.
 
 
Depois de um trabalho de selecção em cada província, entraram em competição doze povoações: Bucos e Vila Chã (Minho); Manhouce e Cambra (Beira Alta); Monsanto e Paúl (Beira Baixa); Azinhaga (Ribatejo); Almalaguez (Beira Litoral); Boassas (Douro Litoral); Nossa Senhora da Orada (Alto Alentejo); Peroguarda (Baixo Alentejo); e Alte (Algarve). As províncias de Trás-os-Montes e Estremadura ficaram de fora. Feita a selecção, em 18 de Setembro de 1938, um júri nacional começou a percorrer o país para visitar as aldeias concorrentes para eleger a «aldeia mais portuguesa». António Ferro presidia o júri constituído pela sua esposa – Fernanda de Castro –, pelo jornalista Gustavo Matos Sequeira, pelo musicólogo e folclorista Armando Leça, pelos etnógrafos Luís Chaves e Cardoso Marta e por Augusto Pinto. O júri era acompanhado por uma brigada fotográfica e cinematográfica e por repórteres nacionais e estrangeiros (Alves, 2007a). A campanha de «bom gosto» tinha chegado às aldeias portuguesas, agora transformadas em cenários-paisagem do que deveriam ser todas as aldeias, modelo estético que mudaria as paisagens de Portugal, e aí talvez o país ficasse um «jardim à beira-mar plantado».
 
 
Nas aldeias transformadas em cenários-paisagem, António Ferro e a sua comitiva poderiam apreciar a «arte do povo», essa «arte que pode considerar-se a linguagem espontânea, harmoniosa, das suas mãos», o que na realidade não correspondia à verdade, como se sabe, porque as encenações do SPN/SNI de espontâneo teriam muito pouco. Das aldeias visitadas, Monsanto foi aquela que parece ter impressionado mais os visitantes com a sua rusticidade e tipicidade, tornando-se, a partir de então, num símbolo da nacionalidade, tendo nascido mais um mito territorial que António Ferro anunciaria claramente em 1947: «mais uma terra maravilhosa, fisionomia desconhecida, ou quase desconhecida, dos portugueses que já a procuram e apontam, carinhosamente, no mapa do seu país, onde passou a existir uma luz mais» (citado por Alves, 2007a).
 
A ideia de percorrer o país e de mostrar a beleza das suas paisagens com o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal revela a visão propagandística de António Ferro pretender uma intenção turística, como se pode constatar no discurso que proferiu na gala da entrega do prémio Galo de Prata a Monsanto: (citado por Alves, 1997):
 
Monsanto ganhou o galardão porque traduziria uma realidade atemporal, preparada para receber os visitantes, encenando-se até ao pormenor, transformada num espectáculo de uma paisagem que ilustraria o melhor da raça portuguesa, sintetizando na sua graça a alegria e a cor deste povo esteta num quadro hiper-realista, já que todas as virtudes ali estariam representadas. Esta aldeia, nascida das rochas, enchia os olhos e a alma de turistas e de quem a visitava, como foi o caso de Cardoso Mata:
 
Os estereótipos estavam inventados: a noiva minhota, a tricana coimbrã, o galo de Barcelos, as filigranas, os pauliteiros de Miranda… e Monsanto, como a «aldeia mais portuguesa», modelo de tradição e bom gosto. Para além de reduzir o popular ao rural, segundo uma idealização estética do camponês transformado em jardineiro da paisagem, António Ferro pretendia «aportuguesar» as paisagens de Portugal, mesmo que isso significasse ignorar a realidade do país e as respectivas estruturas sociais.
 
 
A procura do «genuíno», a sobrevalorização do impacte visual dos objectos e a imagem atemporal da realidade fizeram do Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal um dos pontos mais altos da política de estetização do regime, mesmo que a «maravilhosa intuição artística» do povo português resultasse de ensaios e encenações, como aconteceu em Monsanto.
 
Vejamos uma notícia de um jornal da época (citado por Alves, 2007a):
 
Logo a seguir começou o trabalho árduo, ininterrupto, aqui em Monsanto, para em tão pouco tempo se preparar tudo quanto era preciso, para um espectáculo de tamanha categoria. Estava em jogo o brio nacional pois que para o espectáculo estava convidado o Corpo Diplomático […].
Assim, depois de escolhidos os componentes dos diversos grupos e seus respetivos dirigentes, deu-se início aos trabalhos e arranjos de indumentária e pertences. […].
 
 
Sales Viana, perdendo noites sobre noites, teimando sempre, vai e volta a Monsanto, cuidando de tudo, não esquecendo dos mínimos pormenores, ralhando aqui, elogiando acolá, acarinhando os mais tímidos e entusiasmando os que às vezes, mostravam desânimo.
 
Afinal, a arte popular estava nas mãos dos artistas do SPN/SNI. Pintores, encenadores, etnógrafos e fotógrafos faziam parte da equipa de campanha estética e de educação do «bom gosto», como aconteceu, entre outros casos, na realização do Recinto das Aldeias da Exposição do Mundo Português, em 1940, onde mais uma vez foram criados simulacros a fazerem acreditar que as casas do mundo rural português seriam algumas das aguarelas de A Casa Portuguesa, de Raul Lino, e que os figurantes seriam a representação límpida dos camponeses, correspondendo às paisagens idílicas do Portugal rural habitadas por lindas meninas sorridentes, bem penteadas, de trajes festivos e cobertas de ouro ao peito a puxarem juntas de bois.
 
Exposição do Mundo Português, 1940
 
 

Conclusão
 
O discurso oficial do Estado Novo pretendia dar uma ideia de um país de «camponeses estetas», de um povo de poetas que vivia em paisagens rurais harmoniosas, cheias de graça que representavam o genuíno, o autêntico e tradicional da cultura portuguesa, confundindo-se com a própria identidade nacional. Contudo, esse conceito foi uma «invenção» de António Ferro e dos seus colaboradores, ao se servirem de ideais românticos e nacionalistas desenvolvidos desde finais do século XIX que o SPN/SNI soube aproveitar para concretizar a «Política do Espírito» e a doutrinação necessária ao regime salazarista, e os «camponeses estetas» não eram mais do que o resultado de uma política de estetização de camponeses e da construção idílica de paisagens de um Portugal rural de jardineiros da paisagem para consumo de turistas e visitantes.
 
Da política de estetização e de objectificação foram desenvolvidos mitos e representações de um Portugal que apresentava uma identidade nacional baseada na sua homogeneidade cultural, nas suas raízes cujas diferenças seriam cromáticas e não estruturais. Como afirma João Leal, «a diversidade não era apreendida enquanto tal, com todas as conflitualidades que transporta, mas antes uma variação cromática dentro do mesmo» (Leal, 2000).
 
António Ferro – e o SPN/SNI – foi responsável pela criação de mitos, de símbolos nacionais, de paisagens de galos de Barcelos e de aldeias tradicionais, mas o maior mito talvez tenha sido a construção de uma imagem bucólica, conservadora e fotográfica de um rural que, nalguns casos, parece continuar a fazer parte do imaginário português.

 
Fonte : CADERNOS CURSO DE DOUTORAMENTO EM GEOGRAFIA FLUP
Publicado em TRAJAR DO POVO EM PORTUGAL – 18.11.2014