sexta-feira, janeiro 06, 2012

A menina quer bailar?

Por Hernâni Matos

Nos bailes populares alentejanos dos finais do séc. XIX – princípios do séc. XX, era sacramental a pergunta endereçada pelo rapaz, à moça que lhe enchera as medidas: - A menina querbailar? A resposta, podia assumir a forma dum rotundo “Não!”, tradicionalmente conhecido por “cabaço”. Mas a resposta podia igualmente revestir a forma dum rasgado sorriso, acompanhado dum entregar de corpo, às mãos e braços do varão inquiridor, que conduziria a moça durante o baile. Eles bailavam de chapeirão, de bota cardada e calças com boca-de-sino. Elas, de saia a rasar o chão, o que levava alguns rapazes a confessar que:
"Toda a vida me agradou, Moça de saia rasteira,Porque pranta o pé no chãoDevagar, não faz poeira." [3]
Todavia, os rapazes não gostavam que as moças dançassem de socos:
“Os sóccos para dançarFazem mui ruim effêto,Ainda que as damas usemRicas jóias em sê pêto. ” [3]
No descanso, dava para eles enrolarem um paivante e tirar umas quantas fumaças, que isso de ser homem dá para fumar. E é sempre bom levar o varapau, que o diabo às vezes assume a forma
de maltês. Também dava para elas comporem as saias à cinta, aperaltar os colares e compor os carrapitos. Como vêem existia uma grande diferença de género. Eu tenho uma certa pena das moças, porque os aprestos dos homens deviam ser algo incómodos, a menos que eles fossem ágeis e cuidadosos. De contrário, dançar de botifarras, devia dar para pregar cada pisadela que fervia. Umas botas alentejanas que se prezem, não são propriamente uns sapatos à Fred Astaire. Também o chapeirão devia ser uma grande chatice, a menos que a moça fosse mais baixa. Se a moça fosse mais alta, o chapeirão batia-lhe no peito e mantinha as distâncias, o que convenhamos era um grandessíssimo inconveniente para o homem. Se a moça fosse da mesma altura, o chapeirão devia estar sempre a embirrar com a cabeça dela, a menos que dançassem de cabecinha ao lado, correndo o risco de dar um jeito ao pescoço. E o dinheiro que sobrara da
romaria já não dava para ir ao endireita. Um dos locais mais afamados para bailar no Alentejo, era o terreiro das Festas de S. Mateus, em Elvas:
“Eu também já fui à festa e fiz promessas a deus de cá voltar outra veza dançar no São Mateus.” [2]
Os bailes populares eram abrilhantados por tocadores de viola ou de acordeão, que eram também cantadores. O bailar chegava a ser apontado como recomendação divina:
“Deus do céu mandou à terra, Um aviso à mocidade, Que cantassem e bailassem, Divertissem-se à vontade.” [1] (Amareleja)
A maioria dos rapazes gostava de bailar e versejar:
“Canto saias, bailo saias, Eu saias ando bailando, Gosto de bailar as saias, Com quem as andas trajando.” [3]
Alguns indicavam minuciosamente, as características a que devia obedecer o baile:
“O bailar quer-se mexido, Puladinho e bem cantado, Quer-se alegre e chegadinho, Ao par que levo ao meu lado.” [1] (Beja)
Bailar bem, era uma virtude a que os rapazes aspiravam:
“Quatro coisas ha no mundo, Que eu desejava apprender: Cantar bem, tocar viola, Báilhar bem e saber ler.” [3]
Algumas das moças seriam vaidosas. Pelo menos, era essa a opinião de alguns dos rapazes:
“Estas meninas d’gora São bonitas, bailam bem; Mas em tendo um fato novo, Já não falam a ninguém.” [3]
Algumas moças recusar-se-iam mesmo a bailar:
“Menina que é cabaceira, Tantos cabaços tem dado, Veja lá se tem algum, Também para mim guardado.” [3]
Por vezes, a rapariga não sabia dançar:
“Oh! Que pernas, oh! que boca, Henriqueta, vossê tem! P´ra que quer vossê as pernas, Se vossê não dança bem?” [3]
Havia rapazes que sabendo cantar e bailar, não percebiam porque é que as raparigas não gostavam deles:
“Tu dizes que não me queres, Meu amor diz-me porquê, Eu sei cantar e bailar, E rir e falar tambem.” [3]
Havia rapazes que lamentavam não saber cantar tão bem, quanto sabiam versejar:
“S’eu soubesse cantar bem, Como sei fazer cantigas, Andava de bàlho em bàlho, Divertindo as raparigas.” [1] (Aljustrel)
Quando faltavam raparigas no baile, havia rapazes que procuravam desfazer os pares, originando frequentes zaragatas:
“Camarada, dá licença, Um bocadinho, faz favor? Quero dar palavra e meia, Ó seu par, que é meu amor.” [3]
Alguns rapazes faziam do cantar e tocar nos bailes, o seu ganha-pão:
“A cantar e a bailar É que o meu bem ganha pão, De viola a tiracolle E panderêta na mão.” [3]
Havia quem exteriorizasse a sua liberdade de poder cantar e bailar:
“Inda canto, inda bailo. Inda cá não ha tristeza, Inda cá não ha quem tenha, Minha liberdade presa.” [3]
Havia mulheres que desejavam ficar sem o marido, a fim de poderem cantar e bailar, tal como em solteiras:
“Já não canto, já não bailo, Que não quer o meu marido, Deixem-no ir embora, Restaurarei o perdido.” [3]
Havia quem, talvez por despeito de não ter par, considerasse que quem estava a bailar, não tinha dinheiro:
“Dos pares que andam bailando, Ali no meio do terreiro, Não se me dá de apostar: Nenhum d’elles tem dinheiro.” [3]
Havia quem, por estar triste, desejasse que os pares a bailar, caíssem, a fim de se divertir:
“Os pares que andam bailando, Quem m’os dera ver cair! Tenho o meu coração triste, Q’ria fartar-me de rir.” [3]
Os rapazes reconheciam que, bailar de empreitada, dava cabo deles:
“Não é o cantar que dá Cabo da rapaziada; É o muito andar de noite E o bàlhar de empreitada.” [1] (Odemira)
Enquanto houvesse cantadores, havia baile:
“Eu vejo o baile acabado, À falta de cantadores: Agora começo eu, Com licença, meus senhores.” [3]
Uma coisa é certa: nem todos os homens gostavam de bailar:
“Para bailar doe-me um dente, Para cantar uma perna, Onde tenho algum alívio, É à porta da taberna.” [3]
Alguns homens, por questões anatómicas, dançariam mesmo mal. Lá diz o rifão: "Barrigudo não dança, só sacode a pança". Todavia, também por questões anatómicas, ainda hoje persiste a crença de que: “Homem pequenino, ou velhaco ou dançarino”. De resto, o rifão “Assim como cantares, assim dançarás", talvez possa significar que “Se tiveres voz de cana rachada, então terás, decerto, pé de chumbo”. Era este o contexto sociológico e lúdico dos bailes populares, nas feiras, festas e romarias do Alentejo, de finais do séc. XIX – inícios do séc. XX.
BIBLIOGRAFIA
[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
[3] - THOMAZ PIRES, António. Cantos Populares Portugueses. Vol. IV. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1910.
Fonte: Hernâni Matos in “A Menina quer bailar?”

1 comentário:

Nova Casa Portuguesa disse...

Muito bom!

Uma vez mais, obrigado pela partilha e divulgação da tradição portuguesa!