quinta-feira, janeiro 19, 2012

Figuras do Porto (e arredores) – A Vendedeira de Fruta



A Vendeira de Fructa no Porto, do Album de Costumes Portuguezes, edição das Livrarias Aillaud e Bertrand(Paris/Lisboa) com texto de Xavier da Cunha na ortografia original.

VENDEDEIRA DE FRUTA NO PORTO

Agrada-lhe? também a mim. Prova de que, o leitor e eu, temos ambos bom-gôsto! Nem real­mente fora acceitavel voto o de quem não sympathizasse com aquelle typo deveras esbelto da vendeira portuense que, a offerecer-nos fructas saborosas e aromáticas, faz quiçá lembrar a graciosidade tentadora com que no paraíso bíblico a lendária Eva presentava ao seu rendido companheiro sumarentos pomos.
Leitor que nunca da capital tenha alongado os passos, e que só por exemplares lisbonenses conheça a fructeira ambulante, mal imagina o que é no Porto a sua congénere! Mal imagina, porque, se ha bruteza que desconsole, é a da mulher-de-giga (collareja ou gallega) que pelas ruas de Lisboa nos vende hortaliça e fructa. O pregão da vendeira lisboeta poderá ser mais musical; poderá. Esta musicalidade, característica dos pregões olisyponenses, parece que vem já de longe. Quem ha que não tenha ouvido falar na cele­bre «Luizinha das camoezas», immortalizada em toantes por galanteador poeta do século XVII?

Figurinhas galantes como esta, não se encontram já hoje por Lisboa: que­brou-se-lhes o molde, creio eu; ficou tão somente a melodia tradicional dos pregões a espriguiçar se em mil requebros de incomparáveis fioriture.

No Porto, não: como fez notar o sagaz critério do nosso Castilho em um dos capítulos da sua Lisboa antiga, no Porto os pregões «são sêccos, áridos, apressados.» É que estamos na terra do trabalho, onde não ha tempo a per­der. A vendeira de fructas, por muito garrida que seja, não pode furtar-se á noção d'este fundamental principio de economia industrial. Ha n'ella o sangue phenicio a denunciar-se por uma irrequieta laboriosidade.

De Avintes, Valladares, e outros circumvizinhos logarejos na margem sul do Douro, eil-a todas as manhans em mercado errante pelas ruas da «cidade invicta.»

Pousa-lhe a canastra em sogra formada por um rolo de ourelos ou coisa parecida; abaixo da sogra, o chapéo de feltro escuro, em guisa de sombrero andaluz, com borlas de retroz, e larga faixa de veludilho a debruar-lhe a aba levantada; entre o chapéo e a cabeça, um lencito, cujas pontas se bamboleiam posteriormente incobrindo-Ihe o arrematar das tranças; segue-se o collete de ganga, ou de cotim, de lan ou de veludo, ás vezes ricamente bordado; nos braços alvejam-lhe nítidas, arregaçadas e fartas, as mangas da camisa; ao collete sobrepõe-se, dobrado em diagonal, um vistoso lenço de chita ou de seda, tarjado por phantasticos florões de ramagem vermelha ou côr-de-laranja; e por sobre o lenço pendentes do collo, os grossos grilhões a sustentarem corações filigranados, de envolta com crucifixos e devotas imagens, tudo de oiro fino, oiro de lei, em harmonia com as enormes arrecadas que lhe derrubam quasi as pequeninas orelhas; depois a saia de estamenha, ou de zuarte, — ou de linhas polychromicas, artisticamente combinada a harmonia do colorido,— saia de toda a roda, em pregas unidas e sobrepostas, que lhe representa a peça mais notável do vestuário; na deanteira o avental de barra; e a conchegar-lhe a saia, para facilitar a locomoção, em vez do cinto que usam as ovarinas, a vendeira portuense adopta ordinariamente um simples lenço enro­lado; desce-lhe a fímbria da saia té perto do tornozelo, o que não obsta a que se lhe destaquem bran­quíssimas como neve as meias de linho no pé calçado em soletas (umas pantufas de couro ou de poli­mento, de lan, de seda mesmo ou de veludo, com bordaduras ás vezes, entrada sempre larga, salto baixís­simo, quasi invisível, e borla espherica de typo mourisco a ultimar-lhe a ornamentação).

Agrada-lhe, ao leitor? Também a mim; também a mim. Prova incontestável, repito, de que nem o leitor, nem eu, perdemos ainda o bom-gôsto.

Xavier da Cunha

Fonte: Agostinho Barbosa Pereira in Coisas que se escrevem

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