domingo, janeiro 15, 2012

Figuras do Porto (e arredores) - A VAREIRA

 A Vareira (Porto), do Album de Costumes Portuguezes, edição das Livrarias Aillaud e Bertrand(Paris/Lisboa) com texto de Fiálho d´Almeida na ortografia original.

Chamam no Porto vareira á mulher d'0var e Espinho, que faz pelas ruas da cidade, em canastra, a venda do peixe: exactamente como a varina de Lisboa, de que a vareira em muito pouco ou em quasi nada differe. Sómente, como a cidade do Douro, apesar de se estar lisboetisando dia a dia, mercê das largas ruas com que a sulcam, e das construcções elegantes com que a matizam, conserva iilesos, no fundo dos seus arrabaldes e velhos bairros, travores de província accentuados, succede que a vareira transplantada da sua terra, para a cidade, nenhuma influencia solíreu da vida. Hoje o ambiente,permanece nos seus moradios da Ribeira e da Foz, como em Ovar, uma estatuela rústica e marinha, a que a cidade não desmanchou a garridice austera do trajo, nem tão pouco os hábitos de vida, as inflexões da pronuncia, e a constructura rija, gracil e primeva, da sua physionomia e da sua figura.

Fina e ligeira, com a saia de sirguilha, muito curta, em pregas finas, amarrada por baixo dos quadris - os tornozelos destros, a mão carnuda e esfusada nos dedos - loira ou morena, mas quasi sempre de olhos claros, nariz correcto, cinta ondulosa e cabellos em desalinho, a vareira constitua um dos mais elegantes typos de mulher do povo que ha na Europa (eu ia a dizer que ha no mundo : haja modéstia!); e pela gentileza architectural da sua figura, reata e continua a corrente da formosura antiga, d'essas mulheres de Praxiteles, com pés chatos, cabecinha pequena, seios turgentes e attitudes clássicas, todas vibrantes ainda das reminiscências do Egypto e da Grécia artística, tanto ella já fica distante, no rythmo das formas, e na impeccavel modelação da anatomia, da nossa fémea civilisada das cidades, que os espartilhos e os trabalhos da vida deformaram, e a hystena contorce, e as perversões hereditárias vem chlorotisando e envilecendo.
Ha um quadrinho de género a admirar na margem Douro, n'uma manhã bem clara e luminosa, por baixo das arcadas da Ribeira... E' o d´um barco aproando ao velho caes saiitroso e recomido, que atfronta os arcos, por debaixo dos quaes rebanhos de vareiras, agachadas sobre as lages, as canastras no chão, contam o peixe. Todas conservam o costume de paratudo ou sirguilha escura, saia e collete, que lhes dão á silhouette uma certa austeridade esculptural. O collete é aberto em decote sobre o seio, e atacado adeante por um cordão, sob cujos zigue-zagues cruza um lenço de ramagens, vestindo os meios limões firmes do seio.

N'este vestuário da vareira ha apenas duas notas hilariantes: as filigranas de ouro, do peito e das ore¬lhas: e a algibeira de matiz estrepitoso, que a ovarina do Porto por uma presilha suspende a uma das voltas da cinta que lhe estrangula os flancos. Esta algibeira é ás vezes uma obra prima de agulha e colorido, feita de applicações de panno escarlate, azul, côr de canario, em volutas, florões, soes e ramagens, a que vem juntar-se filas de botões de madreperola, pequenas borlas de lã, bordados, silvas.

Na confecção d'esta algibeira está em embryão toda uma arte barbara e luxuriante, que as raparigas ensinam umas ás outras, e deixa á vontade, paru a nupcia das gammas polychromas, e para o traçado dos arabescos, a phantasia de cada ingénua bordadora. Não confundir a vareira, que vende peixe pelas ruas, e exclusivamente deriva das tribus que d'Ovar e Espinho emigraram para o Porto, com as Angots do mercado da Cordoaria, portuenses da gemma, e camaradas leaes da reboluda padeira d'Avintes e da sacerdotal lavradeira da Maia - que estas madamas, tão ligitimamente envaidecidas da sua genealogia intra-muros do heroico baluarte, (tripeira, em linguagem menos atlectada) teriam direito a molestar-se da nossa ignorância, e quem sabe se nol-a pagariam, chapando-nos com um robalo podre nas boxexas.

Alem de que, a vareira é uma figura áparte.

Longe ou perto do casebre em que haja nascido, eila é sempre o mesmo typo de formiga activa e fecundante, conservadora das tradições da sua raça, mantendo o vestuário de ha dois séculos, a despeito das modas e das transformações que lhe desfilam deante - indo de quando em quando a terra comprar um pedaço de chão com o producto das suas economias na cidade, e raras vezes escolhendo noivo que não seja um representante da sua tribu, creado com ella. paredes meias, sob os cercados da mesma ilha ou sob a telha-vã da mesma arribana. E isto faz com que dentro dos muros do Porto ou de Lisboa, em plena vida deliquescente, o typo d'ella se conserve e guarde inalterável, como um vivo modêlo de pittoresco, offertado á terre-glaise d'um modelador apaixonado pelo bello antigo.

FIÁLHO D´ALMEIDA

Fonte: Agostinho Barbosa Pereira in Coisas que se escrevem

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