sexta-feira, janeiro 15, 2010

Michel Giacometti, oitenta anos, oitenta imagens

Até 17 de Abril de 2010 decorre no Museu da Música Portuguesa, no Estoril, a exposição “Michel Giacometti, oitenta anos, oitenta imagens”, que pretende homenagear um dos maiores etnógrafos portugueses, nascido na Córsega, licenciado em Letras de Etnografia, lança a âncora em Portugal em 1959. Acaba por se fixar em Bragança. Fundou os Arquivos Sonoros Portugueses em 1960. Percorreu o país nas décadas seguintes, até 1982, tendo gravado cantores e músicas tradicionais que o povo cantava no seu quotidiano. A partir de 1970 apresentou na RTP, durante três anos, o programa "Povo que Canta".
Morreu em Faro no dia 24 de Novembro de 1990. Está sepultado na pequena aldeia de Peroguarda, no concelho de Ferreira do Alentejo.
Em 1991, o Museu do Trabalho de Setúbal, com uma vasta colecção de instrumentos agrícolas e objectos do quotidiano recolhidos por Giacometti, passou a denominar-se Museu do Trabalho Michel Giacometti. A reabertura foi em 18 de Maio de 1995. O seu espólio encontra-se também noutros museus, como o Museu Municipal de Ferreira do Alentejo, o Museu da Música Portuguesa (Casa Verdades de Faria em Monte Estoril) e ainda o Museu Nacional de Etnologia.
A propósito desta exposição e para ilustrar uma das imagens, Maria Micaela Soares (Etnolinguista, fundadora do Serviço de Cultura e o Serviço de Etno-Linguística da Junta Distrital de Lisboa e que foi amiga e colaboradora de Michel Giacometti) escreveu o seguinte texto:

Fabricando Chinelos
Desnudos sobre tojeiras, lamaçais, caminhos geosos, rochas laminosas, arrastavam os pezitos as crianças pobres de Portugal, há perto de meio século. Que deslumbramento para a criadinha de servir quando, aos dez anos, se olhava calçada pela primeira vez! Ao rapaz esperava-o o surpreendente e desconfortável aperto dos pés, até então livres, no dia do exame de instrução primária.
Desdobravam-se as mulheres em invenções para calçarem os seus infantes. Com materiais grosseiros, suas mãos moldavam maravilhas que pregavam a solas de pau, de corda, de esparto. Sapatos lhes chamavam aquelas fabricantes de sonhos.
Sonho igual ao da Saloiinha de Cascais que dormiu na cama com uns estremecidos sapatinhos de pano cor-de-rosa, comprados na Feira de São Pedro de Sintra. Ou ao da jovem tecedeira de sapatos de trança, enrodilhada sobre o engenho, anos a fio, do amanhecer ao longínquo findar do dia, na urdidura do calçado que outros usariam. Haveria de tecer um par para si com as sobras da trança que fosse reunindo. Com palinha, lados, biqueira, contraforte, atacadores, num multicolorido a envergonhar o arco-íris, como o cobiçariam as outras raparigas! Levá-lo-ia ao balharico, onde a esperava o seu príncipe. Mas o lojista pesava, na entrega, a trança da meada e, na recepção, o produto acabado. Nada poderia sobrar, nada sobrou para ela, nem sapatos, nem príncipe. O tempo gerou muito tempo e ele, cansado da espera, partiu.
Saibas tu, ignota obreira de chinelos de pano (noutros lugares ditos de trapo ou de roupa) recusar histórias tristes. Quando Giacometti te imortalizou nessa imagem, sentada à porta de tua casa, lavrando os sapatos que seriam pão para a boca de teus filhos, pressentiu não seres destruidora de quimeras.
Artesã mágica, o tecido rústico que modelas será cristal quando a Gata Borralheira da tua aldeia pisar o estribo da abóbora vertida coche pela varinha de condão da fada nobre e bela.

Imagem
Autor: Michel Giacometti
Data: Setembro de 1973
Local: Paços da Serra, Gouveia